Esta é a versao original, que foi publicada no macintoshico da macmania n.18! os autores sao Tom B e Alexandre Boechat

EXU TRANCA REDE, VERSÃO ORIGINAL

Nossa! Que é isso? Você andou fuçando aqui, Saci? Vem cá ver, menino! O boy atravessa o escritório devagar. Tem uma perna só, seqüela de sua curta car-reira como surfista de trem, e toma cuidado pra não enroscar a muleta nas dezenas de fios que pendem detrás dos computadores instalados em cada mesa.
--O que foi? Exu o quê? O que você andou aprontando por aqui, Rose?
--Eu? Nada! Achei que tivesse sido você.
Na tela, em vez das linhas e colunas da planilha de gastos, estranhos sinais vermelhos sobre fundo preto. Um tridente de duas pontas, cruzes, o escambau. Coisa de macumbeiro? Embaixo, letras também vermelhas confirmando: "ETR - Exu Tranca Rede". Rosângela, secretária executiva bilíngüe, não fazia idéia do que era aquilo. Saci também nem tinha como saber, mas o vírus Exu Tranca Rede tinha, naquela tarde, paralisado quase toda a rede da Grande São Paulo. Devido à regulamentação governamental e à taxação excessiva, a rede paulistana era muito precária, quase toda feita de ligações clandestinas. Partindo de algum ponto da Zona Leste, provavelmente da Móoca, o vírus havia se aproveitado disto para alastrar-se, travando sistemas e destruindo dados. A notícia só apareceria na TV de noite, aí era tarde demais.
--Ah, Rose, isso deve ser zoeira do pessoal da téc-nica. Olha, restarta isso daí, segura o Shift e vê no que dá. Eu não posso ficar por aqui. Já tá na minha hora, tô indo nessa.
Saci fugiu rapidinho pro elevador, deixando Ro-sângela atônita, olhando para aquilo. Era a maior roubada ficar resolvendo os pepinos da Rose, ela parecia que nunca tava entendendo direito. Certa vez tinha apagado um hard disk inteiro tentando ejetar o CD interativo do Fábio Júnior. Embora em menor grau, o pessoal do escritório era todo meio tapado nesse aspecto. Mesmo o pessoal da técnica sabia só comprar e instalar pacotes prontos. Quando dava uma zica que não tava prevista no manual, era um deus-nos-acuda. Saci sempre conseguia dar conta do recado. A computação tinha virado uma coisa totalmente fechada, hermética. Ninguém mais programava, tava tudo pronto. Só a camada mais pobre da população, pilotando máquinas que eram verdadeiros Frankensteins, tinha jogo de cintura. Saci não era exceção. O seu velho PowerPC, todo detonado, ainda rodava uma cópia do Copland; ele tinha que fazer verdadeiras mágicas pra manter aquele troço no ar. O novo secretário de segurança já havia comentado nas páginas amarelas da Veja: "Os últimos hackers são a baianada". E era por isso que as empresas ainda contratavam boys. Ninguém mais precisava ir ao banco, nem levar documentos de um lado para o outro, é claro. Mas quando a porca torcia o rabo só um office-boy para resolver.
-- Ai, Saci! Ai! Corre aqui!
-- Calma, Damásio. O que aconteceu?
-- Eu tava fazendo uma fezinha aqui no TeleBicho que nem você ensinou quando apareceu uma coisa do demo! Cruz-credo!
Damásio era o porteiro do edifício onde Saci trabalhava. Na sua mesinha, no saguão, tinha um terminalzinho onde ele fazia o controle dos visitantes. Era evangélico, mas nunca tinha se interessado em perguntar ao pastor se Jogo do Bicho era pecado. Pelo sim, pelo não, todo dia acessava a home page clandestina do TeleBicho (http://www.castor.bicho.com) pra ver se dava alguma coisa. Agora, diante daquele sinal demoníaco, suava frio. Tinha certeza que era o capeta vindo à Terra para puni-lo. Numa mão segurava a Bíblia; na outra, o manual. Saci ficou chateado. O pessoal da técnica exagerou. Aquilo era sacanagem.
-- Que capeta, que nada, Damásio. Isso daí é zoeira do pessoal lá de cima. -- De cima nada, menino! É de baixo! Isso dai é sinais do inferno! Ai, meu Deus! Eu sabia que eu tinha que gastar menos em vícios e dar o dinheiro pra Jesus, que nem o pastor falou!
-- Não, não é nada disso. Pra fazer o capeta sumir faz que nem eu ensinei: Control, maçã e aquela tecla ali no canto. Isso. Agora, antes de aparecer a carinha, aperta Shift, essa aqui. Fica apertando até entrar a outra tela direitinho. Tenho que ir, mas amanhã dou uma olhada com calma pra ver esse seu capeta.
Antes que alguém mais aparecesse com aquela chateação, Saci saiu pela porta de vidro. O prédio onde trabalhava ficava na Berrini. Na virada do ano 2000, os paulistanos tinham eleito aquela avenida como o símbolo da cidade. Cada cidade com o símbolo que merece. Imensos edifícios de vidro espelhado disputavam lugar com a favela que, ao contrário do plano original e todas as tentativas anteriores, nunca tinha sido erradicada e agora ocupava os espaços que podia. De um certo modo, aquele lugar era a cara de São Paulo; já fazia algumas décadas que casa térrea era curiosidade histórica. Saci esperava no ponto. Passava um pouco das seis, mas naquela época a hora do rush já não existia mais. O trânsito era o mesmo das cinco da manhã até mais ou menos as dez da noite. Entre os microcarros coreanos, carroceiros transportando a féria de papelão do dia. Ali na frente, uma charrete puxada por um pangaré fechava uma faixa de trânsito inteira. O bicho tinha empacado e estava sendo chicoteado impiedosamente, sob buzinas e xingamentos dos motoristas. Saci conseguiu embarcar no quarto ônibus certo que passou. A galera tava pouco se lixando se ele usava muleta ou não. Ninguém nunca lhe cedia a vez. Até a Vila Joaniza II, onde morava, eram três conduções. Ao lado do cobrador, um cara brincava com um Game Boy VR. Parecia um imbecil, apalpando o ar. Quase tomou um tapa quando, sem querer, passou a mão na bunda de um negão que viajava de pé. Muitos passageiros, de microHDTV na mão, assistiam o teipe do jogo do Corinthians (0x0 com o Fluminense). Saci ficou assistindo por cima do ombro de um cara e o tempo até que passou rápido.
-- Ô Saci! Chega mais. Escuta aqui, cara, o que é que você andou armando com a sua tia? Esse negócio de exu fudeu com a minha base de dados. Isso não fica assim não!
Quando Saci chegou à Vila Joaniza II, já estava escuro. Do lugar onde ele descia do ônibus até a sua casa eram oito quarteirões a pé. A rua era de terra; não havia calçada. As casas por ali eram uma mistura de barracos com casinhas de alvenaria. Dos postes pendia um emaranhado incrível de fiação; a maioria daquilo era fibra ótica. As antenas nos telhados formavam uma verdadeira floresta. Aqui e ali, emissores de microondas. Na rua, a molecada improvisava uma pelada com uma bola meio murcha. Quem estava esperando por Saci no meio do caminho era Wesley, o traficante local. Por ali todo mundo conhecia Saci e também a sua tia, a Mãe Jurema, que tinha um terreiro de umbanda na região. Quando Wesley viu o computador onde estavam cadastrados seus clientes travar daquele jeito, sabia de quem suspeitar. Esperava por ele encostado na porta de um bar. Ali por perto, três de seus "associados" nem faziam muita força pra ocultar as Uzis por baixo de jaquetas estampadas com logos de times da NBA. Saci explicou cuidadosamente que não tinha nada a ver com aquilo, e que o mesmo havia inclusive acontecido na firma onde ele trabalhava. Wesley não acreditou muito, mas como era Saci quem resolvia todos os paus do seu sistema e mantinha a coisa funcionando, não havia muita saída. Recomendou a Saci que "ficasse ligado"; Saci prometeu dar uma geral no seu OS no dia seguinte e deu o fora. Aquela história estava ficando muito, muito esquisita. Definitivamente não era uma brincadeira do pessoal da técnica do seu escritório; ele precisava dar uma olhada naquilo. E sabia quem poderia dar uma força com essas coisas de exu. Por sorte o terreiro da tia Jurema não era muito fora do caminho da sua casa. -- Menino, a gente tava te procurando! Sabe o que...
-- É, eu sei, eu sei. Foi o Exu Tranca Rede, né?
Keyla tinha corrido pra encontrar Saci no meio da rua. Era uma mulata muito bonita que ajudava Mãe Jurema a manter tudo em ordem e operava o computador do terreiro. Naturalmente, estava toda de branco. Estava preocupada com a possibilidade de ter perdido o cadastro das entidades que baixavam no terreiro. Saci não perdeu tempo, foi direto falar com a tia. Jurema era cega, e o seu lugar favorito era num canto, num sofá detonado. Ficava de olhos semicerrados e não parava de murmurar e resmungar coisas baixinho para si mesma. Como era velha e muito gorda, raramente levantava dali. Keyla cuidava para que todas as suas ordens fossem executadas e lhe trazia as refeições. Para muitos, Mãe Jurema estava simplesmente gagá, mas quem tivesse um pouco de paciência geralmente se convencia do contrário. Assim que Saci chegou, ela o chamou para perto com um gesto. Nem o deixou falar nada.
-- Meu fio, tô sabendo, me contaram. É Exu que atravessou, né? As coisa tão parada, não flui. Conheço bem. Ê! Vocês acha que essas coisa de computador é novidade, é nada. É tudo igual, conheço bem. As coisa de cima são igual as de baixo e é Exu que faz a ligação. Ele é que abre os caminho, liga os outros mundo com o nosso. Ê! Vocês acha que essas coisa de computador não tem caminho, mas é tudo igual. As rua do computador, as encruzilhada, tá tudo aí nessas rede e é Exu quem rege, ele sim. Mas as pessoa não tem respeito, e agora Exu tá contrariado. Ê! Conheço bem. Tem que ter respeito. Vamo falar com ele; vamo despachar. Pôr oferenda, pôr ebó, aí ele acerta as coisas e faz fluir o que tá bloqueado. É Exu quem tem o poder pra fazer isso. Ê!
Saci não ficou muito convencido, mas de qualquer modo seria legal ver o que dava pra fazer no sistema da tia Jurema. Era quase tão bom como o seu, e ele nunca se separava do floptical onde guardava os seus utilitários. A mesa onde ficava o computador foi mudada para perto da porta do terreiro, onde fica a Casa de Exu. Enquanto Saci restartava o sistema com um OS alternativo, o terreiro era preparado.

Embarabô, ago, mojuba.
Embarabo, ago mojubá
Omodé co eko,
Embarabo, ago mojuba.

O quadro era, no mínimo, curioso. No centro de tudo, Saci operava um computador sem a tampa, todo remendado com silvertape. A única luz vinha do monitor, uma velha matriz de cristal líquido, e de dezenas de velas brancas. Nos lados do computador e do monitor haviam sido riscados pontos com pemba vermelha. A mesa, coberta por um pano vermelho com sinais brancos. Em volta, as oferendas: Marafa, cidra e vinho branco em pequenas cumbucas de barro; panelas com farinha de mandioca, mel e dendê; charutos acesos. Muitas folhas de erva espada e folhas de manga. Essências de mirra, rosa e sumo de arruda tornavam o ar difícil de respirar. Pessoas de branco tocavam, em atabaques, o ponto do exu; cantavam e dançavam sincopadamente.

Exu Onã,
Exu Lonã,
Mo gi rê lô dê
Elegbara,
Legbara, ie ie
Exu Ona, ke wa ô!

Saci logo percebeu que combater o vírus diretamente dava pouco resultado. A melhor estratégia seria criar um programinha que funcionasse como "oferenda", quase uma isca. Algo que atraísse o vírus, satisfazendo os seus requerimentos, e desse modo o neutralizasse. Não foi nada fácil. O ritual durou até o nascer do sol; algumas pessoas entravam em transe, outras caíam no chão, extenuadas. Saci, alheio a tudo, batia rapidamente no teclado e, vez ou outra, dava ordens secas para o reconhecedor de voz. Tinha que preparar o anti-vírus com os seus programas dando pau e desligando-se inesperadamente, acusando erro tipo 1. Passava das seis da manhã, e o batuque já havia enfraquecido bastante, quando a oferenda subitamente foi aceita. Saci rapidamente copiou o código básico do vírus para um floptical e ejetou. Em poucos segundos, o sistema foi liberado pelo Exu Tranca Rede. A conexão estava aberta. Obedecendo às suas instruções, o anti-vírus de Saci começou a replicar-se pela rede. Da Vila Joaniza II para o backbone de Diadema, e dali pros sistemas industriais do ABC. Mas disso Saci não podia saber, o seu programa era impossível de ser traçado. No dia seguinte os boletins dariam a notícia que o vírus Exu Tranca Rede havia sumido tão misteriosamente quanto havia aparecido.
-- Eu não te disse? Jesus é poder! Satanás não saía daqui do meu computador de jeito nenhum, aí eu orei, orei com fé e, de manhã, quando eu cheguei, o demo já tinha exorcizado. O poder de Jesus conquista tudo! Saci estava chegando, atrasadíssimo, ao trabalho. Estava com olheiras profundas, tinha passado a noite em claro. Fez um sinal com a mão para Damásio, não estava interessado naquele papo de crente. Não naquela hora. Ele teve uma noite realmente dura.
No terreiro da Mãe Jurema, escondido num canto do altar, tinha um disco floptical dentro de um pote vazio de maionese. A tampa tinha uma cruz traçada e havia sido lacrada. Ali estava o primeiro cramulhão da era digital.