Homepage Blog do Fanzine Índice No 16 Índice Números Anteriores Contato
http://barataeletrica.cjb.net http://www.inf.ufsc.br/
Versão Txt http://www.barataeletrica.rg3.net

SAM HALL

 

(Parte do conto "Sam Hall", autor: Poul Anderson - retirado do livro "Máquinas que pensam" - Isaac Assimov - L&PM Editores - Obs: Houve algumas modificações na tradução, pra tirar um pouco o vocabulário difícil, mas devido a vários fatores, a maior parte foi deixada inalterada. Vale notar que este conto foi um dos primeiros a alertar para o perigo que pode significar o computador num regime autoritário. O conto tem um final feliz, se houver interesse eu conto no próximo número.)

Clique. Bzz. Rrrrr.

Cidadao Fulno de Tal, cidade indefinida. Qualquer ponto dos EUA, aproxima- se da portaria do hotel.

- Quero quarto individual, com banho, por favor.

- Desculpe, senhor, mas o combustivel está racionado e nao se permitem banheiros privativos. Podemos reservar-lhe um, 25 dolares de acrescimo.

- Ah, só isso, tudo bem.

O cidadao fulano de tal enfia a mao no bolso, mecanicamente tira o cartao eletronico e entrega para ser registrado pelo aparelo de controle. Mandibulas de aluminio apertam, dentes de cobre entram nos furos - a lingua eletronica saboreia o gosto da vida do cidadao.

- objetivo de sua vinda a cidade, senhor?

- sou vendedor. Espero estar em nova Pitsburgh amanha a noite.

o funcionario da portaria (32 anos, casado, dois filhos. observacao confidencial: judeu. nao pode exercer funcoes de muita responsabilidade0 aperta os botoes.

Clique, Clik, a maquina devolve o cartao. o cidadao fulano de tal guarda de novo a carteira.

- Fromm!

O camareiro (19 anos, solteiro, observacao confidencial: catolico. nao pode exercer funcoes importantes) carrega a mala do hospede. O elevador sobe rangendo. O funcionario da portaria volta a leitura. O titulo do artigo da revista: "sera' que a Inglaterra nos traiu?" Ha' muitos outros: "novo programa ideologico para as forcas armadas", "perseguicao a operarios em marte", "Me infiltrei nos sindicatos a mando da policia de seguranca", "Novos planos para o SEU futuro".

A maquina fica falando sozinha. Clique, clique. Uma valvula pisca para a que esta' do lado, como se so' elas entendessem a piada. A informacao completa e' transmitida pelos fio.

Depois de passar por mil outros sinais chega ao ultimo cabo e entra na unidade classificadora dos registros centrais. clique, clique. Bzz. Rrrr, pisca e brilha. Um feixe de raios varre os circuitos da memoria. As moleculas distorcidas revelam os dados do cidadao fulano de tal, que sao remetidos de volta. Entram na unidade de confronto, para onde tambem foi desviado o sinal correspondente ao mesmo cidadao. Os dois estao em sintonia perfeita; nao ha nada errado. O cidadao Fulano de tal vai pernoitar na cidade onde, na vespera, declarou que pretendia ficar, e portanto, nao precisou apresentar nenhuma modificacao em seus planos.

A nova informacao e' acrescentada ao registro do cidadao fulanod de tal. A sua vida inteira volta ao banco de memoria. O feixe de raios foto- emissores e as unidades de confronto passam tudo em revista, deixando a ficha livre para o proximo que chegar.

A maquina engoliu e digeriu mais um dia. Esta' satisfeita.

 

Thornberg entra no escritorio na mesma hora de sempre. A secretaria levanta os olhos para dar "bom dia"e examinar com mais atencao. Trabalha para ele a bastante tempo e sabe notar cada nuance do rosto bem controlado.

- Aconteceu alguma coisa, chefe?

- Nao. - A resposta vem aspera, o que tambem e' de estranhar. - Nao, nao aconteceu nada. Deve ser por causa do tempo, talvez.

- Ah - A secretaria concorda com a cabeca. Funcionario publico logo aprende a ser discreto. - Pois faco votos que o senhor melhore.

- Obrigado. Nao e'nada de mais.

 

Thornberg vai mancando ate' a mesa, senta-se e tira o maco de cigarros do bolso. Fica meio hesitante, segurando um cigarro entre os dedos amarelados de nicotina antes de usar o isqueiro, com uma expressao perdida no olhar. Depois expele a fumaca com raiva e concentra-se na correspondencia. Como chefe tecnico dos registros centrais, recebe uma quota generosa de cigarros, que usa ate' o fim.

O escritorio nao e' amplo - um cubiculo sem janelas, mobiliado com sobriedade rigoroso, so' atenuada pelo retrato do filho e da mulher, ja' falecida. Thornberg parece grande demais para o ambiente. Alto, magro, de feicoes finas e angulosas, mantem o cabelo grisalho impecavelmente penteado. A roupa que veste e' uma versao a paisana do uniforme de seguranca, onde se veem as insignias da Divisao Tecnica e do posto de major, mas nenhuma condecoracao ou fitas a que tem direito. Os vassalos de Matilda, a Maquina, hoje em dia nao ligam muito para essas formalidades.

Enquanto le a correspondencia, nao para de fumar. Assuntos de rotina, na maioria relacionados com remanejamentos indispensaveis aa instalacao do novo sistema de identificacao.

- Venha ca', June - pede a secretaria. Por mais irracional que possa parecer, prefere ditar, em vez de usar diretamente o gravador. - vamos liquidar logo com isto aqui. Estou com muito trabalho pela frente.

E com uma carta na mao:

 

- Ao senador E.W.Harnison, SOB, Nova Washington. Prezado Senhor: Com referencia a sua comunicacao do dia quatorze do corrente, solicitando minha opiniao pessoal sobre o novo sistema de cartao de identidade, cumpre-me dizer-lhe que a funcao de um tecnico nao consiste em emitir opinioes. A diretriz que determina que cada cidadao tenha um unico numero aplicavel a todos os documentos e funcoes - certidao de nascimento, certificados de conclusao de cursos, cartoes de racionamento, inscricoes na previdencia social, servico militar, etc. - oferece nitidas vantagens a longo prazo, mas implica naturalmente em trabalho de grande vulto para a reformulacao de nossso registros eletronicos. Tendo o Presidente decidido que os beneficios futuros compensam as dificuldades atuasis, a populacao tem a aobrigacao de obedecer. Cordiais Saudacoes e tudo mais - Sorri com certa frieza.

- Pronto, quero ver como ele se sai desta! Francamente, nao sei para que serve o Congresso alem de incomodar burocratas honestos.

June resolve, consigo mesmo, alterar a carta. Pode ser que um senador nao passe de um carimbo deborracha, mas nao se deve trata-lo de maneira tao laconica assim. Impedir que o chefe se meta em enrascadas e'o dever primordial de qualquer secretaria.

- Muito bem, vamos a outra - diz Thornberg - Ao coronel M. R. Hubert, Diretor do Departamento de Relacoes Publlicas, Secretaria Central de Registros, Policia de seguranca, etc Com referencia ao seu memorando de quatorze do corrente, solicitando data exata para a conclusao dos trabalhos de modificacao dos cartoes de identidade, permito-lhe respeitosamente informar-lhe com toda a franqueza, da imposssibilidade de determina-la. Antes sera' necessario aperfeicoar uma unidade de alteracao dos bancos de memoria que efetue as mudancas em todos os registros sem que seja preciso retirar e modificar cada uma das trezentas milhoes de bobinas, aproximadamente, na maquina. V.Sa ha' de compreender a impossibilidade de se prever o tempo exato indispensavel para completar um projeto dessa natureza. No entanto, as pesquisas avancam de modo satisfatorio (cite a ele, por favor, os dados incluidos em meu ultimo relatorio) e posso garantir-lhe que dentro de dois meses, no maximo, os trabalhos estarao concluidos e todos os cidadaos notificados dos respectivos numeros. Respeitosamente, etc e tal.. Coloque isso de uma maneira simples, June.

A secretaria acena com a cabeca. Thornberg continua a examinar a correspondencia, separando a maioria para June responder sozinha. Depois boceja e acende outro cigarro.

- Graca a Ala', isto esta' pronto. Agora ja'posso descer para o laboratorio.

- O senhor tem alguns compromissos a tarde - lembra June

- Eu volto depois do almoco. Ate' ja'.

Levanta-se e sai da sala.

Desce a escada rolante que leva a outro pavimento ainda mais subterraneo e atravessa um corredor, respondendo distraido aos cumprimentos dos tecnicos que vai encontrando pelo caminho. O rosto permanece impassivel e talvez so' o movimento rigido dos bracos revela a tensao.

"Jimmy" pensa consigo mesmo. "Jimmy, meu filho".

Entra no compartimento da guarda, encostando a maso e o olho no foco de raios fotemissores da porta do fundo. O feitio do dedo e da retina servem de senha; nao toca nenhuma sirene de alarme: a porta se abre e ele entra no templo da maquina.

Matilda esta' agachada, enorme, diante de Thornberg, com fileiras de paineis de controle, instrumentos, luzes que apagam e acendem, feito uma piramide asteca. Os deuses murmuram no seu bojo e piscam olhos vermelhos para o homem minusculo que se desloca sobre os flancos descomuncis. o major para um pouco, contemplando o espetaculo. Depis sorri,, um sorriso de cansaco qu abre apenas um lado do rosto. Ocorre-lhe a lembranca sardonica de uma materia contrabandeada das decads de 40 e 50 do seculo passado: autores franceses, alemaes, ingleses e italianos que tinha lido. Intelectuais que se inflamavam, preocupados com a americanizacao da Europa, a desagregacao da cultura antiga diante do barbarismo automatico dos refrigerantes, da publicidade, dos automoveis cromados (sorrizos dolarizados, como os apelidaram os dinamarqueses), chicletes, plasticos .. nenhum deles foi capaz de protestar contra a europeizacao simultanea da America: a interferencia governamental, a casta dos militares, os anos luz dos registros burocraticos e formalidades oficiais, censura, policia secreta, nacionalismo e racismo.

Enfim, paciencia.

"Mas Jimmy, meu rapaz, onde e' que voce esta', o que e' que estao fazendo com voce neste instante?"

Thornberg aproxima-se da mesa onde o engenheiro-chefe, Rodney, testa uma unidade.

- Como e' que voce esta' se saindo? - pergunta.

- Bastante bem, chefe - responde Rodney, sem se dar ao trabalho de prestar continencia: Thornberg alia's proibiu-a nos laboratórios, por uma questão de economia de tempo. - Ainda tem alguns defeitos, mas estamos endireitando tudo.

O indispensável e' encontrar um expediente que altere somente os números, mais nada. Não é facil, quando os bancos de memória dependem do âmbito magnético individual.

- Ótimo - diz Thornberg - Escuta, vou subir lá para os controles principais. Também tenho que fazer alguns testes .. há umas válvulas esquisitas na Seção no 13.

- Quer um assessor?

- Não, obrigado, quero apenas que ninguém me incomode.

Thornberg continua no seu caminho, a firmez de atitudes se refletindo no eco dos passos. Os controles principais ficam numa cabine blindada especial da grande pirâmide e precisa submeter-se novamente ao foco dos raios fotemissores antes que a porta se abra para dar passagem. Raras pessoas são admitidas ali. Os arquivos completos da nação são valiosos demais para se exporem a tais riscos.

O coeficiente de lealdade de Thornberg é AAB-2 - não absolutamente perfeito, mas o melhor disponível entre homens do mesmo gabarito profissional. O último check-up com auxílio de drogas revelou certas dúvidas e reservas em relação a política do governo, mas não registrou nenhuma prova de desobediência. A primeira vista, mostra-se propenso a ser leal. Lutou com bravura na guerra contra o Brasil, perdendo uma perna em combate; a mulher morreu nas tentativas malogradas de lançamento de foguetes chineses dez anos atrás; o filho presta serviço, de modo promissor, como guarda-espacial em Vênus. Leu e escutou material proibido, livros proscritos, propaganda subversiva e estrangeira, mas qual o intelectual que não sente curiosidade por essas coisas? Não constitui ofensa grave, se o resto da folha corrida for impecável e as coisas proibidas encaradas como piada.

Senta-se um pouco, olhando o painel de controle da cabine. A complexidade é capaz de desconcertar muitos engenheiros, mas já faz tanto tempo que está familiarizado com Matilda que sequer precisa dos quadros de referência.

Bem...

Precisa ser ousado. Uma sessão de hipnose sem dúvida revelaria o que pretende fazer. Mas esse tipo de exame obedece, forçosamente a um critério fortuito; é provavel que se passem muitos anos antes que o chamem de novo, ainda mais com o coeficiente que tem. Quando for descoberto, Jack estará tão altamente posicionado na hierarquia da guarda que não correrá riscos.

Resguardado pela cabine, Thornberg permite-se um sorriso cruel.

- O que vou fazer - murmura para a máquina - será mais doloroso pra mim do que para você.

Começa a apertar botões.

 

Há circuitos instalados que são capazes de modificar os registros - basta retirar um completo e escrever o que se quiser nos campos magnéticos. Thornberg já fez isso algumas vezes para altos funcionários. Agora vai fazer por conta própria.

Jimmy Obrenowicz, filho de um primo em segundo grau, foi preso na véspera pela polícia de Segurança, por suspeita de traição. Os registros indicam o que nenhum guarda civil deve saber: Jimmy está no quartel de Fieldstone. Quem consegue sair de lá guarda o mais rigoroso sigilo, não faz o menor comentário sobre o lugar onde esteve; as vezes nunca mais abre a boca para falar.

Não convém, para o chefe dos Registros Centrais, ter um parente em Fieldstone. Thornberg aperta botões durante meia hora, eliminando, trocando. O trabalho é cansativo - precisa retroceder a várias gerações, alterar linhas de descendência. Mas quando termina, não existe mais o menor grau de parentesco entre Jimmy Obrenowicz e os Thornbergs.

E dizer que eu gostava tanto daquele rapaz. Mas não é por minha causa. Jimmy, que estou fazendo isto. É pelo Jack. Quando a polícia examinar sua ficha, decerto ainda hoje, não posso deixar que descubram que você é parente do capitão Thornberg em Vênus e amigo do pai dele.

Aperta a alavanca que devolve a bobina ao lugar reservado no banco de memória. Com este ato renego solenemente você.

Depois fica um pouco sentado, aproveitando a tranquilidade da cabine e a impessoalidade asseada dos instrumentos. Nem sente vontade de fumar.

Quer dizer então, que daqui por diante cada cidadão vai ter um número, sem dúvida tatuado no próprio corpo? Um número para tudo. Thornberg já preve o apelido que os homens numerados vão ter na gíria: "carimbados". E a perseguição da Segurança aos que usarem o termo. Linguagem subversiva.

Bem, a resistência clandestina é um perigo. Apoiada por países estrangeiros que resistem a idéia de um mundo dominado por americanos - pelo menos pelo tipo de América de hoje, embora já tenha havido época em que "EUA" significava "Esperança". Consta que os rebeldes mantém sua própria base espacial, depois de infestar o país de agentes secretos. Pode ser. A propaganda deles é sutil: "Não queremos arruinar a nação, apenas liberta-la, restaurando a Lei dos Direitos Humanos". O protótipo do chamariz para uma série de espíritos indecisos. Mas a teia de contra-espionagem da Segurança vai colher fatalmente qualquer número de cidadãos que jamais cogitaram em traição. Como Jimmy - ou será que Jimmy, afinal, também participa da resistência? Nunca se sabe. Ninguém fala sobre essas coisas.

Thornberg sente um gosto amargo na boca. Faz um esgar. Ocorre-lhe o verso de uma canção. "I hate you one and all" (eu odeio todos sem exceção). Como é mesmo a letra? Sempre cantada na época da faculdade. Qualquer coisa sobre um tipo muito ressentido que cometeu um crime.

Ah, sim. "Sam Hall". Mas como é que é mesmo? Precisava-se ter uma voz de baixo bem áspera para canta-la direito.

 

"Oh, my name is Sam Hall, it is Sam Hall

Yes, my name is Sam Hall, it is Sam Hall

Oh, my name is Sam Hall,

And I hate you one and all,

Yes I hate you one and all, God damn your eyes"

 

É isso mesmo. E Sam Hall ia ser enforcado pelo crime. Agora se lembra. Sente-se como se fosse o próprio. Olha para a máquina, pensando quantos Sam Halls não estariam ali dentro.

Só por curiosidade, adiando a volta ao trabalho, aperta as teclas que fornecem a ficha - nome: Samuel Hall, sem outras especificações. Não demora, surge uma série de documentos, micro-impressos na hora pelos bancos de memória. Os dados completos de todos os Sam Halls, vivos e mortos desde a época em que se começaram a a guardar os registros. Ah, que tudo vá para o inferno. Thornberg joga os papeis na fenda do incinerador.

"Oh, I killed a man, they say, so they say..."

 

O impulso chega aser cego, de tantaferocidade. A esta hora estão com Jimmy nas mãos, no mínimo esmurrando-lhe os rins, enquanto ele, Thornberg, fica ali sentado, à espera que a polícia peça a ficha de Jimmy e não há nada que possa fazer. Nem sequer tem uma arma nas mãos.

 

- Por Deus - pensou, - eles vão ver o que eu faço com o Sam Hall!

Os dedos disparam; esquece a náusea de lidar com problemas técnicos complicados. Inserir uma bobina falsa em Matilda - não é fácil. Não dá pra duplicar números e cada cidadão tem uma porção deles. É preciso levar em conta todos os dias de sua vida.

Bem, uma parte pode ser simplificada. A máquina só existe há vinte e cinco anos: antes disso, os documentos eram arquivados em uma dúzia de escritórios diferentes. Vamos fazer com que Sam Hall more em Nova York, onde sua ficha desapareceu durante o bombardeio de trinta anos atrás. Tudo o que lhe dizia respeito, que se achava em Nova Washington, simplesmente sumiu durante o ataque chinês. O que significa que ele simplesmente relatou a maior quantidade de pormenores que conseguiu lembrar, que não precisava ser muita.

Vejamos. "Sam Hall" é uma canção inglesa, portanto o nosso Sam Hall também deve ser. Veio para cá com os pais, ha', ahn, trinta anos, quando tinha apenas três e se naturalizou junto com eles; isso foi antes da lei que passou a proibir tudo quanto é espécie de migração. Cresceu no Lado Leste central de Nova York, um garoto resistente, produto dos pardieiros. Os registros de colégio se perderam nos bombardeios, mas pretende ter chegado ao décimo grau. Nenhum parente vivo. Sem família. Nem ocupação regular, apenas uma série de biscates não especializados. Coeficiente de lealdade: BBA-0, o que equivale a dizer que perguntas puramente de rotina mostraram que não tem opiniões políticas que possam interessar.

Essa história está muito sem graça. Vamos botar um pouco de violência nos antecedentes. Thornberg aperta teclas que dão informações sobre as delegacias distritais de Nova York e guardas da polícia civil que desapareceram nos últimos ataques aéreos. Usa tudo para estabelecer registros que atestam que Sam Hall sempre andou metido em encrencas - detenção por embriaguês, perturbação da ordem pública, brigas, suspeitas de assalto e arrombamento - nunca bastante graves para provocar interrogatório rigoroso dos técnicos em hipnose da Segurança.

Hum. Seria preferível qualifica-lo como isento da obrigatoriedade do serviço militar. Por que motivo? Ora, uma dependencia leve de entorpecentes; hoje em dia, a necessidade de recrutas não é tão grande que exija a cura de pequenos víciados. A neococaína não prejudica demais as faculdades mentais; já se provou, inclusive, que o dependente apresenta reflexos mais rápidos e seguros sob a influência da droga, embora a reação posterior não deixe de ser violenta.

Depois, teria que ter trabalhado algum tempo para uma empresa civil. Vejamos. Passou três anos como operário comum no projeto da Represa do Colorado; havia tanta gente metida lá que é impossível que alguém se lembre dele - ou pelo menos será dificílimo encontrar um supervisor capaz desse prodígio de memória.

Agora toca a preencher o resto. Thornberg recorre a uma série de máquinas automáticas. Tem que levar em consideração cada dia daqueles vinte e cinco anos; mas evidentemente na maioria não houve nenhuma viagem ou mudança de endereço. Várias teclas simultãneas para vasculhar o livro de hospedes dos hotéis ordinários de nada adiantam - não haveria registro dessas hospedagens, pois tudo já estaria arquivado em Matilda, e ninguém se lembraria de um indivíduo insignificante. A residência atual de Sam Hall é indicada como sendo no Triton, espelunca famosa do lado leste, a pouca distãncia das crateras abertas pelas bombas. Atualmente desempregado, sem dúvida vivendo de economias passadas. Ah, que droga! Precisa arquivar as restituições do imposto de renda. Thornberg corrige o lapso.

Hum... dados físicos para a cédula de identidade. Descrevê-lo como de estatura mediana, porte atlético, cabelos e olhos escuros, nariz adunco e cicatriz na testa - cara de machão, mas não a ponto de chamar atenção. Thornberg fornece as medidas exatas. Não encontra dificuldade para falsificar impressões digitais e retinianas: inclui um circuito de censura para evitar que sejam duplicados os dados de outra pessoa qualquer.

Concluído o serviço, recosta-se na cadeira e dá um suspiro. A ficha ainda apresenta muitas falhas, que podem ser corrigidas mais tarde. Foram horas a fio de trabalho duro e concentrado - sem pé nem cabeça, mas que ao menos serviu para desabafar a raiva. Já se sente muito melhor.

Olha o relógio de pulso. Está na hora de voltar pro batente, meu filho. Num momento de revolta, prefere que o relógio nunca tivesse sido inventado. Apesar de possibilitar a ciência que venera, é entretanto o responsável pela mecanização humana. Ah, paciência, agora é tarde demais, não adianta reclamar. Levanta-se e sai da cabine. A porta se fecha as suas costas.

 

Cerca de um mês depois, Sam Hall comete o primeiro crime.

Thornberg passou a noite da véspera em casa. O cargo lhe dá direito a um bom alojamento, mesmo que more sozinho - duas peças com banheiro no 98o andar de uma unidade urbana, a pouca distãncia da entrada camuflada dos domínios subterrâneos de Matilda. O fato de servir na Segurança, embora não faça parte do setor encarregado de caçadas humanas, lhe propicia tantos privilégios adicionais que a sensação de solidão é muito frequente. O superintendente chegou inclusive a oferecer-lhe sua própria filha - "Tem apenas 23 anos, chefe e acaba de ser lilberada por um cavalheiro que ocupava o cargo de delegado, e está a procura de um protetor simpático." Thornberg não quis aceitar, esforçando-se para não parecer puritano. Autres temps, Autres moers (outros tempos, outros costumes) - mas, mesmo assim, ela não teria tido o menor direito de escolha em relação a condição social do pretendente, pelo menos na primeira vez. E o casamento de Thornberg havia sido duradouro e feliz.

Procura nas estantes algum livro para ler. A Agência literária anda ultimamente aclamando Whitman como exemplo precursor do americanismo, mas, apesar de ter sempre gostado do poeta, as mãos de Thornberg buscam, de propósito, o volume de folhas dobradas de Marlowe. Ah, paciência, os tempos não estão para brincadeiras. Não é nada fácil pertencer a uma nação que impoe a paz a um mundo inóspito - convém ser realista, dinâmico e tudo mais, sem dúvida alguma.

O telefone toca. Atende, ligando o receptor. O rosto redondo e sem graça de Martha Obrenowicz aparece no vídeo; o cabelo grisalho está desgrenhado e a voz rouca e esganiçada.

 

- Ah... olá - diz, contrafeito. Não ligou para ela desde que recebeu a notícia da prisão do filho. - Como vai?

- Jimmy morreu - ela informa.

Fica parado um bom tempo. O crânio parece oco.

 

- Hoje soube que ele morreu no quartel - continua Martha - Achei que você gostaria de saber.

Thornberg sacode a cabeça para trás e para frente, bem devagar.

 

- Não é o tipo de coisa que me agrade, Martha - diz.

 

- Não está certo! - grita ela - Jimmy não era um traidor. Eu conhecia meu filho. Quem poderia conhecê-lo melhor do que eu? Ele tinha uns amigos que me deixavam com a pulga na orelha, mas Jimmy jamais iria...

Thornberg sente uma barra de gelo no peito. Nunca se sabe quando as ligações estão sendo gravadas.

 

- Sinto muito, Martha - diz, com a voz neutra - Mas a polícia é muito cuidadosa com essas coisas. Só agem quando têm plena certeza. A justiça é uma das nossas maiores tradições.

 

Ela fica olhando um tempão para ele. Há um brilho duro nos olhos.

 

- Até você também - desabafa, por fim.

- Cuidado, Martha - avisa - Sei que foi um golpe muito duro para você, mas não diga nada de que depois você possa se arrepender. Afinal de contas, Jimmy talvez tenha morrido num acidente. Essas coisas acontecem.

- Tinha me esquecido - diz ela, contendo os soluços - Você também.. trabalha para a Segurança.

 

- Fique calma - pede - Encare como um sacrifício em prol do interesse nacional.

 

Ela desliga o aparelho. Thornberg sabe que nunca mais há de ligar novamente. E não seria conveniente procura-la.

 

- Adeus Martha - diz em voz alta.

 

Tem impressão de que é outra pessoa que está falando.

Vira-se outra vez para a estante. Não por mim, pensa consigo mesmo, numa desculpa esfarrapada. Por Jack. Toca na encaderncação de "Folhas da Relva". Ah, Whitman, seu velho rebelde, pergunta, sentindo uma estranha vontade de rir, será que hoje te chamam de Walt Ventania?

Nessa noite precisa de um comprimido a mais para dormir. Se apresenta no trabalho com a cabeça ainda zonza, e, depois de se esforçar inutilmente para responder a correspondência, desiste e desce ao laboratório.

Enquanto fala com Rodney, sem conseguir entender direito o problema técnico que o outro explica, olha distraído para Matilda. De repente se dá conta da catarse de que está precisando. Interrompe a conversa com a maior rapidez possível e vai para a cabine principal de controle.

Fica um instante imóvel diante do teclado. A criação diuturna de Sam Hall constitui uma experiência estranhissima. Ele, calmo e introvertido, modelou uma vida turbulenta e pintou uma personalidade escabrosa. Sam Hall lhe pareceu mais real do que muitos colegas. Bem, sou um tipo meio esquizofrênico. Talvez desse um bom escritor. Não, isso acarretaria uma série interminável de restrições e viveria com medo de ofender a censura. Tinha feito exatamente o que queria com Sam Hall.

Respira fundo e aperta a tecla de consulta de crimes não esclarecidos pelos oficiais de Segurança na região da Cidade de Nova York no período compreendido pelo último mês. São surpreendentemente numerosos. Será possível que o descontentamento é mais geral do que o governo pretende? Mas quando uma nação em peso alimenta idéias rotuladas pelo governo de subversivas, o rótulo ainda se aplica?

Encontra o que procura. O sargento Brady entrou incautamente no distrito das crateras na noite de vinte e sete do mês passado, em missão rotineira de patrulhamento; andava de uniforme preto, decerto para melhor impor a autoridade. na manhã seguinte acharam o cadáver caído num beco, com a cabeça esmigalhada.

 

"Oh, i killed a man, they say, so they say.

Yes, i killed a man, they say, so they say.

I beat him on the head

And i left him there for dead

Yes, I left him there for dead, God damn his eyes"

 

A imprensa, evidentemente deplora essa brutalidade perpetrada por agentes pérfidos das potências inimigas.("Oh, the parson, he did come, he did come") Prendem logo um bando de suspeitos, que são severamente interrogados. ("And the sheriff, he came too, he came too") Não se consegue provar nada por enquanto, apesar da detenção, ontem, de um certo Joe Nikolsky (americano de quinta geração, mecânico, casado, com quatro filhos), por terem encontrados panfletos subversivos em seu poder.

Thornberg solta um suspiro. Conhece de sobra os métodos da Segurança e não tem dúvida de que logo vão achar um bode expiatório para indiciar pelo homicídio. Não hão de permitir que a fama de infalibilidade do serviço fique abalada por falta de provas decisivas. Talvez Nikolsky tenha cometido o crime - e talvez não. Mas, com todos os diabos, por que não lhe dar uma chance? É pai de quatro filhos. Com uma nota negativa dessas, não admira que a mãe só achasse trabalho num centro recreativo.

Thornberg coça a cabeça. É necessário agir com cautela. Vejamos. O corpo de Brady a essa altura já deve ter sido cremado, mas claro que antes passou por exame minucioso. Thornberg tira da máquina a ficha do morto e microimprime uma cópia da prova - resultado nulo. Apaga a informação e insere a declaração de que a marca digital borrada de um polegar foi encontrada no colarinho da vítima e entregue aos laboratórios de identificação para ser reconstituída. No arquivo referente aos laboratórios, inclui o relatório desse trabalho, concluído somente ontem por causa do grande acúmulo de serviço. (O que não deixa de ser verdade - ultimamente andam muito ocupados com material remetido de Marte, confiscado numa batida em local de reuniões rebeldes). O contorno provável das sinuosidades é .. e aqui coloca a impressão do polegar direito de Sam Hall.

Repõe as bobinas no lugar e se recosta na cadeira. É arriscado; se alguém se lembrar de verificar no laboratório de identificação, está perdido. Mas é pouco provável; tudo indica que Nova York aceitará as informações com uma notificação de recebimento normal que um funcionário do laboratório vai arquivar sem sequer examinar. os perigos mais flagrantes também não são muito grandes: um destacamento policial ocupadíssimo não perderá tempo em averiguar se algum dos encarregados de recolher impressões digitais realmente provocou aquele borrão; e quanto a uma sessão de hipnose que demonstre que Nikolsky é mesmo o assassino, bem, nesse caso hão de presumir que a marca seja de um transeunte que encontrou o cadáver sem comunicar a ninguém.

De modo que agora Sam Hall matou um agente de Segurança - pegando-o pelo pescoço e esmigalhando-lhe o crânio com um porrete pesado. Thornberg já se sente bastante melhor.

 

A Segurança de Nova York manda pedir aos Registros Centrais todo material novo relacionado com o caso de Brady. Um autômato recebe a mensagem, compara os códigos e vê que acrescentaram informações recentes. Remete logo a resposta, junto com os antecedentes de Sam Hall e de outros dois homens - pois talvez a reconstituição não esteja absolutamente exata.

No fim, os outros dois não oferecem nenhum problema. Ambos tem álibis. O pelotão que invade o hotel Triton, perguntando por Sam Hall, é recebido com olhares perplexos. Não há ninguém registrado no livro de hóspedes com esse nome. A descrição não coincide com nenhuma pessoa de lá. Um interrogatório rigoroso só server para corroborar essa afirmação. Portanto - Sam Hall tinha conseguido falsificar um endereço. Podia fazer isso com a maior facilidade: bastava apertar os botões do registro do hotel quando ninguém estivesse olhando. Sam Hall pode estar em qualquer lugar!

Joe Nikolsky, depois de hipnotizado e considerado incapaz de fazer mal a uma mosca, é posto em liberdade. A multa pela posse de material subversivo irá endivida-lo por alguns anos - não conta com amigos influentes que possam interferir para que seja perdoada - mas não se meteria em encrencas se tomasse cuidado. A Segurança expede um aviso de alarme para localizar Sam Hall.

É com regozijo escarninho que Thornberg vê a caçada se aproximar de Matilda. Ninguém com aquela cédula de identidade comprou passagem para qualquer tipo de transporte público. O que nada prova. Das centenas de pessoas que desaparecem anualmente, algumas no mínimo são assassinadas justamente por causa dessas cédulas, os cadáveres não oferecendo nenhuma utilidade. Matilda está pronta a dar o alarme, quando o cartão de identidade de uma pessoa desaparecida surgir em alguma parte. Thornberg se encarrega de falsificar um punhado de relatórios dessa espécie, só para dar um pouco de trabalho à polícia.

A cada noite que passa, encontra mais dificuldade para conciliar o sono, e o seu trabalho começa a render menos. A certa altura cruza com Martha Obrenovwicz na rua - segue adiante, sem sequer cumprimenta-la - e depois não consegue dormir de jeito nenhum, mesmo usando o máximo de comprimidos permitido.

O novo sistema de identificação fica pronto. As máquinas mandam aviso a todos os cidadãos, ordenando que tatuem seus números na omoplata direita dentro do prazo de seis semanas. À medida que cada centro de tatuagem comunica que tal e tal pessoa fez o trabalho, os robôs de Matilda mudam a ficha respectiva. Sam Hall, AX-428-399-075 não se apresenta em centro nenhum. Thornberg morre de rir com o símbolo AX (nota: em ingles, AX tem pronúncia igual a Axe=machado).

Aí então os jornais de televisão divulgam uma notícia que obriga a nação inteira a prestar atenção. Uma quadrilha de bandidos assaltou o First National Bank na cidade de América, em Idaho (antigamente Moscou), levando a vultosa quantia de cinco milhões de dólares em notas de vários valores. Pelo tipo de disciplina e equipamento, presume-se que sejam agentes subversivos, possivelmente provenientes de uma espaçonave que decolou de alguma base interplanetária desconhecida e que a incursão se destina a custear atividades iníquas. A segurança ajuda as forças armadas a achar o paradeiro dos malfeitores, sendo as prisões aguardadas a qualquer momento, etc ..., etc.

Thornberg obtém um relatório completo com Matilda. A ação foi ousada. Os assaltantes, pelo visto, usaram máscaras plásticas e coletes a prova de balas sob roupas a paisana. No tumulto da fuga, a máscar de um dos ladrões saiu do lugar só por um instante, mas um funcionário do banco que viu por acaso isso acontecer consegue, com auxílio de hipnose, dar uma descrição bastante boa: um sujeito de cabelos castanhos, atarracado, nariz aquilino, lábios finos, bigodes vastos.

Thornberg hesita. Uma piada é uma piada; e socorrer o pobre Nikolsly talvez fosse moralmente defensável; mas ajudar e favorecer um crime de semelhante gravidade que, com toda a probabilidade, constitui autêntico ato de traição...

Sorri consigo mesmo, sem achar muita graça. Brincar de Deus é divertido demais. Troca rapidamente de ficha. O meliante agora possui estatura média, moreno, cicatriz no rosto, nariz quebrado ... Fica sentado ali um pouco, perguntando-se até que ponto está regulando bem da cabeça. Se é que existe, aliás, alguém equilibrado.

A Central de Segurança solicita dados completos sobre o assalto, com todas as correlações que a máquina pode tirar. Recebeu tudo. A descrição fornecida se encaixa com uma porção de homens, mas o feixe de raios fotoemissores elimina um a um, deixando uma única possibilidade: Sam Hall.

Os perdigueiros saem ladrando de novo. Naquela noite Thornberg dorme feito um anjo.